Quando o futebol exala o cheiro podre do fascismo
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Um cheiro podre tem sido sentido no futebol brasileiro. É o cheiro do fascismo. Três acontecimentos recentes, noticiados pela imprensa, e ocorridos em apenas uma semana, evidenciam esse fenômeno:
1. No dia 23 de janeiro, ao se dirigir ao estádio do Morumbi para disputar um jogo decisivo contra o Coritiba, o ônibus que transportava os jogadores e a comissão técnica do São Paulo FC foi alvo de uma emboscada por parte de um grupo de trinta torcedores do próprio time.
Pedras, bombas e rojões foram lançados contra o ônibus, perfurando sua fuselagem e quebrando vidros das janelas. Dentro do ônibus, os jogadores que estavam concentrados para a partida ficaram muito assustados. Brenner quase foi atingido por uma pedra e ficou tenso. Hoje li a notícia de que a venda do jogador para o FC Cincinnati, dos Estados Unidos, teve o aval dele, que pediu para ser negociado. A agressão certamente pesou nessa decisão.
Após confronto com feridos, a polícia prendeu 14 pessoas, que foram denunciadas pelo Ministério Público paulista. Junto com elas foram encontrados rojões, pedras, barras de ferro e bombas, que foram desativadas pelo GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais).
Além do susto, houve a desconfiança de que alguém de dentro do clube havia passado a informação do itinerário do ônibus, que foi alterado justamente para se evitar uma emboscada, como a que aconteceu. Isso gerou uma discussão entre alguns jogadores e o gerente de futebol antes da partida. Imaginem o clima tenso do time. O São Paulo empatou naquele jogo em que necessitava de uma vitória, contra um dos últimos da tabela. A agressão contribuiu para o desempenho ruim do time em campo.
Já houve outras emboscadas de torcedores contra os ônibus dos próprios times. Mas não lembro de nenhuma ter sido tão violenta e agressiva quanto esta. Ao colocar em risco e atentar contra a vida dos jogadores e da comissão técnica, expressou uma forma bizarra de protesto. Aliás, não se tratou de protesto, mas de um bando de pessoas dispostas a realizar um linchamento. Um linchamento do próprio time.
2. Oito dias depois, na madrugada de domingo (31/1), após o Palmeiras ter vencido o Santos e se consagrar campeão da Copa Libertadores da América 2020, um homem esfaqueou e matou sua esposa em São Domingos, zona Oeste da cidade de São Paulo. Segundo a polícia, o motivo da briga teria sido o futebol: a esposa, palmeirense, comemorou o título conquistado pelo seu time, o que teria desagradado o marido, torcedor do Corinthians. O casal tinha duas filhas pequenas.
Não foi uma briga de futebol. Foi um feminicídio. Trata-se de um crime de ódio, no qual a motivação da morte está relacionada ao fato da vítima ser mulher. Só no feriado do último Natal, ao menos seis mulheres foram assassinadas por ex-companheiros. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve crescimento dos feminicídios no primeiro semestre de 2020, totalizando 648 casos. A pandemia agravou o quadro da violência contra as mulheres: na cidade de São Paulo, em março e abril, os meses mais críticos, o número de mulheres assassinadas por companheiros ou ex-companheiros subiu 41,4% no período.
Dentre as motivações mais comuns dos agressores, de acordo com as Nações Unidas, estão o sentimento de posse sobre a mulher, o controle sobre o seu corpo, desejo e autonomia, limitação da sua emancipação (profissional, econômica, social ou intelectual) e desprezo e ódio por sua condição de gênero.
Lembro de um filme de Bruno Barreto chamado O casamento de Romeu e Julieta, uma comédia romântica água-com-acúcar, na qual um corinthiano e uma palmeirense, provenientes de famílias fanáticas pelos respectivos times, subvertem o final trágico da peça de Shakespeare e “vivem felizes para sempre”.
Óbvio que a vida não é filme, mas esse caso de feminicídio exemplifica como o convívio entre diferentes, em algumas situações, tornou-se impossível. E não me refiro a torcer por times diferentes. O futebol consistiu num pretexto fútil para este crime de ódio. Segundo matéria do El País (29/12/2020), esses casos de feminicídio escancaram o machismo estrutural que permeiam a sociedade e instituições, ganhando força no Brasil no contexto em que o próprio presidente conquistou notoriedade por suas atitudes misóginas, isto é, que expressam ódio, aversão ou desprezo pelas mulheres.
3. Em Porto Alegre, no dia 28 de janeiro, após o Grêmio ser derrotado pelo Flamengo por 4×2, Renato Gaúcho, técnico do tricolor gaúcho, fez uma grave ameaça aos jornalistas na coletiva de imprensa: “Quando a gente ouve algumas pessoas da imprensa falando besteira, e é bom que eu não tenho medo de vocês da imprensa e não tenho medo de nenhum de vocês. Vou começar a dar o nome aqui na próxima entrevista, se continuar falando besteira durante a semana, vou deixar um de vocês, ou dois ou três, mais famosos, mas eu vou dar o nome. Depois vocês se acertam com a torcida do Grêmio. É só continuar falando besteira lá que eu tenho autorização do meu presidente e aí vocês vão ver lá nas redes sociais“.
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) cobrou explicações do Grêmio sobre as ameaças feitas pelo técnico. “Trata-se de uma lamentável tática de intimidação da imprensa, que expõe jornalistas a injúrias, difamação, divulgação indevida de dados pessoais, ameaças e, nos casos mais extremos, pode redundar em agressões físicas e tentativas de homicídio.” (Marcelo Träsel, presidente da Abraji).
Alguns veículos progressistas, como Brasil 247 e Forum, fizeram uma conexão imediata da ameaça de Renato Gaúcho com a atitude de Jair Bolsonaro, seja pela semelhança de estilo, seja porque o técnico é um bolsonarista declarado.
Um dia antes (27/01), Bolsonaro fez pesados xingamentos à imprensa, ao rebater os gastos com leite condensado no Exército: “Quando eu vejo a imprensa me atacar, dizendo que eu comprei 2,5 milhões de latas de leite condensado”, disse Bolsonaro durante o almoço no restaurante localizado na Vila Planalto. “Vai pra puta que o pariu!”, completou, sendo aplaudido pelos presentes. “É pra enfiar no rabo de vocês aí da imprensa”, disse ainda Bolsonaro, exaltado, chamando a mídia brasileira de “imprensa de merda”.
Não é impressionante a semelhança de estilo entre os dois? Renato Gaúcho, por essa grave ameaça aos jornalistas, deveria ser banido do futebol e do esporte, assim como Jair Bolsonaro deveria ser banido da cena política brasileira. Ambos semeiam a violência e a intolerância contra quem ousa questioná-los.
Emboscada armada pela própria torcida, feminicídio motivado por briga de futebol e ameaça à integridade física dos jornalistas. Nas últimas semanas, o futebol, como parte da sociedade brasileira, tem exalado um cheiro podre. Trata-se do cheiro do fascismo. Contra isso é preciso se indignar, pararmos de naturalizar a barbárie, o genocídio e o ódio em curso. E nos mobilizarmos politicamente tanto pelo impeachment de Bolsonaro como contra essas formas de violência que vitimam sobretudo mulheres, pessoas LGBTQI, afro-brasileiros, indígenas, pobres e moradores das periferias urbanas.
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Antropólogo, documentarista, socialista, comediante amador e são-paulino da Vila Sônia.
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Há tempos uma parte do futebol é fascista, machista, LGBTfóbico e racista. O estádio de futebol era (é) um espaço livre para destilar ódio, se bem que nos últimos anos está havendo punições a torcedores, jogadores e clubes inteiros. Aos poucos o mundo vai evoluindo.
Penso da mesma forma Jo! Valeu! abraço